A obra de Michel de Foucault (1926 -1984) é, incontestavelmente, referência para qualquer pesquisador que se proponha à análise social em vários campos de conhecimento. Poucos pensadores do século XX tiveram repercussão tão grande quanto o francês e menos ainda tiveram suas obras lidas fora das academias. O que o tornou uma referência universal foi o caráter inovador de sua obra: Foucault analisou, sob um ponto de vista bastante inédito, questões que possibilitaram uma nova abordagem das instituições sociais e das estruturas do pensamento (ou sistemas, como ele chamava). Com isso desvendou a relação entre as práticas discursivas e os poderes nelas intrínsecos. Mais do que isso, ele construiu um aparato instrumental para essas análises, traçando uma metodologia que ainda é referência nas pesquisas sociais. A importância de sua obra na educação é incontestável. Sua análise das disciplinas como um discurso organizado do poder e da escola como um instrumento adestrador do corpo contribuíram para a formulação de novas maneiras de pensar o processo ensino / aprendizagem, fora dos rígidos padrões que Foucault apontou em seus escritos. Apesar de sua formação em Filosofia e Psicologia, Foucault preferia referir-se a si como um arqueólogo do saber.
Michel de Certeau (1925-1986) era contemporâneo e conterrâneo de Foucault. Além disso, mantinha com ele uma relação de amizade e admiração, expressa em sua obra fundamental, A Invenção do Cotidiano, na qual ele utiliza-se basicamente da obra de Foucault, além de Wittgeinstein e Benveniste, para delinear alguns conceitos que são particularmente caros aos estudos atuais nas áreas da Comunicação, da Educação e da Cultura. Embora a sua obra tenha sido dirigida aos estudos da linguagem e da cultura, ela é base, hoje, de pesquisas em várias áreas. Na Educação, particularmente, Certeau é um guia nas pesquisas fundadas no cotidiano escolar. O que há de inovador na obra de Certeau são os conceitos de estratégia e de tática que definem, por sua vez, os conceitos lugar próprio e lugar praticado. Embora tenha ancorado sua obra na análise de Foucault, particularmente no livro Vigiar e Punir, Certeau aponta outro viés para a questão do discurso como um lugar do poder. Para ele, pessoas e sociedades se valem do discurso como um lugar onde podem trançar seus próprios sentidos a partir das delimitações espaciais do discurso fundador, subvertendo, assim, o que Foucault apontou como a ordem do discurso e apropriando-se dela para, numa negociação sem fim, imprimir ali também sua marca. Essa negociação é feita com base no que Certeau chamou de táticas que, ao mesmo tempo em que surgem a partir de um lugar próprio, delineado pela estratégia (ou o discurso do poder), transformam-no num lugar praticado.
Por meio desse rápido panorama dos dois pesquisadores podemos ver, a princípio, um ponto comum entre eles: ambos utilizam a espacialidade como metáfora nas suas análises do discurso. Para ambos a linguagem é uma construção arquitetônica na qual o indivíduo se movimenta e interage com o outro. Porém, a construção proposta por Foucault é a própria do discurso que ele desnuda. Ele se vale exatamente da arquitetura panóptica, colocando-se na posição de observador onipresente e onisciente, para denunciar a manutenção do poder nas bases da sociedade por meio do discurso organizado, conforme ele deixa claro nessa fala:
“suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” 1 .
Assim, para Foucault, o discurso é uma estratégia de dominação. Certeau, ao contrário, aponta para a subversão da ordem do discurso por meio das táticas, comparando a linguagem ao traçado de uma cidade (lugar próprio), onde cada morador faz o seu próprio caminho (lugar praticado), construindo (se) ao longo da caminhada permanente. Enquanto Foucault aponta as estruturas permanentes de controle no discurso, ou o que ele chama de as microfísicas do poder, Certeau aponta para as fissuras das quais o sujeito se vale para subverter essa ordem e imprimir ali sua marca por meio da ação: “ela (a verdade) será resultado de um trabalho – histórico, crítico, econômico. (...) A partir de agora, a identidade depende de uma produção, de uma caminhada interminável (...) o ser se mede pelo fazer” 2. Assim, se em ambos o discurso é uma construção arquitetônica, em Foucault essa construção já está pronta e é delimitadora, adestradora e perpetua a sujeição do indivíduo ao poder difuso das instituições, enquanto que em Certeau ela é o ponto de apoio para “Diferentes usos e diferentes práticas (que) produzem uma pluralidade de resultados (a cultura do plural)” 3.
Outro fator nos quais os dois pesquisadores se diferenciam é a base da pesquisa de cada um deles: Foucault preocupa-se em ancorar sua pesquisa no discurso instituído, colocando as formas ordinárias de discurso fora do seu campo de estudos, embora reconheça a existência delas quando se refere aos “princípios de exclusão” (a interdição e a rejeição) e tenha se preocupado em suas pesquisas basicamente com os excluídos, conforme nos demonstra as publicações A História da Loucura (1961), Vigiar e Punir e a obra inacabada História da Sexualidade, entre outras. Assim, o que interessa a Foucault são as estratégias do poder institucional presentes no discurso. Em A Ordem do Discurso, ele deixa poeticamente claro a importância que o discurso instituído ou institucional tem para sua obra:
“O desejo diz: “eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz”. E a instituição responde: “você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que lhe advém”.”
Certeau, ao contrário, fundamenta seus estudos na linguagem oral do cotidiano. Para ele a oralidade é o fundamento da relação social e exerce um papel central na constante recriação do espaço discursivo, por meio das interações com o lugar que é a fala. Ele acredita que o significado é fruto do uso cotidiano da linguagem, e não apenas da produção institucional dela. De acordo com Josgrilberg (2005,p.50) Certeau define a estratégia como
“[...] o cálculo, a manipulação de relações de poder, tornadas possíveis pelo isolamento - sustentado pelo desejo e poder – de um objeto, as estratégias organizam, determinam um lugar que pode ser administrado em relação uma exterioridade composta de alvos e ameaças”3.
Embora reconheça o jogo da estratégia, Certeau acredita que o controle da história e das práticas cotidianas é, porém, uma ficção, pois a existência das táticas torna o discurso um ato performativo, um lugar praticado, ou seja, um lugar onde o sujeito dialoga e interfere no discurso institucional, tornando o controle apontado por Foucault uma ficção.
Certeau utiliza o exemplo do equilibrista na corda bamba para pensar o movimento advindo das táticas e da constante reorganização do lugar. Na corda bamba o equilíbrio acontece em pleno movimento, quando o equilibrista recria a cada passo um novo equilíbrio, que nos remete ao ditado popular que diz que o caminho se faz ao caminhar:
“Em suma, um equilíbrio anterior no espaço funciona como a base para intervenções que criarão novos equilíbrios. Parar seria uma ilusão, indicaria a confiança no próprio lugar. Trata-se, portanto, de uma série infindável de partidas.”3
Certeau aponta que os relatos orais têm um papel central nessa recriação infindável do equilíbrio no espaço do discurso: são eles os movimentos que mantêm esse equilíbrio constante. Assim, para Certeau, a prática da oralidade não é um mero ato de consumo passivo e de repetição de um discurso já dado: é também um ato produtivo, performático, que traz em si uma pluralidade de códigos e referências. Com isso, Certeau aponta para a “tensão entre a “gramática que controla” e a enunciação que a atualiza” 3.
Certeau, assim como Foucault, preocupa-se em desvendar as microrrelações de poder no discurso. O que os diferencia nessa busca é a crença de um e de outro nas funções desses micro poderes e micro relações. Enquanto Certeau crê que elas deslocam as fronteiras da dominação imposta pelo discurso do poder, minando-o por meios das táticas, Foucault acredita que elas perpetuam essa dominação. Mas, em sua obra, Foucault termina por demonstrar exatamente o contrário daquilo que pretende provar: que o discurso do dominador não é tão rígido e impermeável assim, uma vez que o próprio pesquisador pode desvendá-lo por meio de suas rigorosas pesquisas históricas (ou arqueológicas, como ele diria). Como aponta JOSGRILBER (pag. 88), Foucault utiliza-se das táticas apontadas por Certeau ao utilizar uma visão panóptica da realidade para observar, descrever e analisar as estratégias disciplinares, traçando, em seus relatos, novas possibilidades de reconhecer e recontar a microfísica do poder que ele aponta. Assim, Foucault entra em contradição com seu próprio objeto ao usar, selecionar e dividir o material base de sua pesquisa e, a partir dele, pensar o aparato disciplinar. Foucault também situa o discurso como “um jogo (...) que jamais põe em jogo senão os signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante.”1 Porém, é em Certeau que encontramos elementos do jogo apontado por Foucault: estratégias e táticas nada mais são do que elementos do jogo e da guerra. E, tanto um quanto a outra têm relação com a luta pelo poder.
Portanto, ambos os pensadores se contradizem na fundamentação básica do seu pensamento: Foucault, que acredita na imutabilidade da ordem do discurso, acaba por comprovar com suas pesquisas que o discurso é passível de ser reorganizado, seccionado, analisado e reinterpretado, como qualquer outro objeto da ciência, a partir de um instrumental apropriado – a História, a Psicologia e a Filosofia. Certeau, que acredita que o discurso é uma construção que se faz e é feita permanentemente pelos falantes, um lugar definido pelo constante devir, acaba por inseri-lo na ordem do discurso de Foucault ao batizar seus conceitos a partir de signos utilizados nos jogos e nas guerras.
Os críticos de Foucault o acusam de pessimista. Os críticos de Certeau apontam a sua metáfora de guerra e de jogo como uma estrutura binária, A versus B, que indica um jogo de forças entre duas organizações monolíticas3. O que é incontestável na obra tanto de um quanto de outro é a contribuição que ambos deram aos estudos sociais. Foucault, ao apontar o dedo para as estruturas do discurso do poder, nos chama a atenção sobre elas, enfatizando o que nelas nos aprisiona e, com isso, nos liberta da prisão desse discurso. Certeau, ao enfatizar o papel da cultura oral e popular na formação do discurso, traz para a pauta uma gama enorme de novas possibilidades de pensar e estruturar a linguagem. E, ao mesmo tempo, nos coloca em um lugar dinâmico, onde todo o equilíbrio deve ser base para um novo equilíbrio e a imutabilidade das coisas deixa de existir: podemos nos reconstruir a cada dia, como sujeitos, como cidadãos, como sociedade.
Referências Bibliográficas:
1 – FOUCAULT, Michel – A Ordem do Discurso. Ed. Loyola. 1996
2- CERTEAU, Michel – A Invenção do Cotidiano – citado em JOSGRILBER, Fábio B. – Cotidiano e Invenção – os espaços de Michel de Certeau. Ed. Escrituras. 2005
3- JOSGRILBER, Fábio B. – Cotidiano e Invenção – os espaços de Michel de Certeau. Ed. Escrituras. 2005