terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Um diálogo entre a Ordem do Discurso, de Foucault, e as Táticas em Certeau: observações sobre a linguagem praticada com base na obra dos dois autores.

A obra de Michel de Foucault (1926 -1984) é, incontestavelmente, referência para qualquer pesquisador que se proponha à análise social em vários campos de conhecimento. Poucos pensadores do século XX tiveram repercussão tão grande quanto o francês e menos ainda tiveram suas obras lidas fora das academias. O que o tornou uma referência universal foi o caráter inovador de sua obra: Foucault analisou, sob um ponto de vista bastante inédito, questões que possibilitaram uma nova abordagem das instituições sociais e das estruturas do pensamento (ou sistemas, como ele chamava). Com isso desvendou a relação entre as práticas discursivas e os poderes nelas intrínsecos. Mais do que isso, ele construiu um aparato instrumental para essas análises, traçando uma metodologia que ainda é referência nas pesquisas sociais. A importância de sua obra na educação é incontestável. Sua análise das disciplinas como um discurso organizado do poder e da escola como um instrumento adestrador do corpo contribuíram para a formulação de novas maneiras de pensar o processo ensino / aprendizagem, fora dos rígidos padrões que Foucault apontou em seus escritos. Apesar de sua formação em Filosofia e Psicologia, Foucault preferia referir-se a si como um arqueólogo do saber.

Michel de Certeau (1925-1986) era contemporâneo e conterrâneo de Foucault. Além disso, mantinha com ele uma relação de amizade e admiração, expressa em sua obra fundamental, A Invenção do Cotidiano, na qual ele utiliza-se basicamente da obra de Foucault, além de Wittgeinstein e Benveniste, para delinear alguns conceitos que são particularmente caros aos estudos atuais nas áreas da Comunicação, da Educação e da Cultura. Embora a sua obra tenha sido dirigida aos estudos da linguagem e da cultura, ela é base, hoje, de pesquisas em várias áreas. Na Educação, particularmente, Certeau é um guia nas pesquisas fundadas no cotidiano escolar. O que há de inovador na obra de Certeau são os conceitos de estratégia e de tática que definem, por sua vez, os conceitos lugar próprio e lugar praticado. Embora tenha ancorado sua obra na análise de Foucault, particularmente no livro Vigiar e Punir, Certeau aponta outro viés para a questão do discurso como um lugar do poder. Para ele, pessoas e sociedades se valem do discurso como um lugar onde podem trançar seus próprios sentidos a partir das delimitações espaciais do discurso fundador, subvertendo, assim, o que Foucault apontou como a ordem do discurso e apropriando-se dela para, numa negociação sem fim, imprimir ali também sua marca. Essa negociação é feita com base no que Certeau chamou de táticas que, ao mesmo tempo em que surgem a partir de um lugar próprio, delineado pela estratégia (ou o discurso do poder), transformam-no num lugar praticado.

Por meio desse rápido panorama dos dois pesquisadores podemos ver, a princípio, um ponto comum entre eles: ambos utilizam a espacialidade como metáfora nas suas análises do discurso. Para ambos a linguagem é uma construção arquitetônica na qual o indivíduo se movimenta e interage com o outro. Porém, a construção proposta por Foucault é a própria do discurso que ele desnuda. Ele se vale exatamente da arquitetura panóptica, colocando-se na posição de observador onipresente e onisciente, para denunciar a manutenção do poder nas bases da sociedade por meio do discurso organizado, conforme ele deixa claro nessa fala:

“suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” 1 .

Assim, para Foucault, o discurso é uma estratégia de dominação. Certeau, ao contrário, aponta para a subversão da ordem do discurso por meio das táticas, comparando a linguagem ao traçado de uma cidade (lugar próprio), onde cada morador faz o seu próprio caminho (lugar praticado), construindo (se) ao longo da caminhada permanente. Enquanto Foucault aponta as estruturas permanentes de controle no discurso, ou o que ele chama de as microfísicas do poder, Certeau aponta para as fissuras das quais o sujeito se vale para subverter essa ordem e imprimir ali sua marca por meio da ação: “ela (a verdade) será resultado de um trabalho – histórico, crítico, econômico. (...) A partir de agora, a identidade depende de uma produção, de uma caminhada interminável (...) o ser se mede pelo fazer” 2. Assim, se em ambos o discurso é uma construção arquitetônica, em Foucault essa construção já está pronta e é delimitadora, adestradora e perpetua a sujeição do indivíduo ao poder difuso das instituições, enquanto que em Certeau ela é o ponto de apoio para “Diferentes usos e diferentes práticas (que) produzem uma pluralidade de resultados (a cultura do plural)” 3.

Outro fator nos quais os dois pesquisadores se diferenciam é a base da pesquisa de cada um deles: Foucault preocupa-se em ancorar sua pesquisa no discurso instituído, colocando as formas ordinárias de discurso fora do seu campo de estudos, embora reconheça a existência delas quando se refere aos “princípios de exclusão” (a interdição e a rejeição) e tenha se preocupado em suas pesquisas basicamente com os excluídos, conforme nos demonstra as publicações A História da Loucura (1961), Vigiar e Punir e a obra inacabada História da Sexualidade, entre outras. Assim, o que interessa a Foucault são as estratégias do poder institucional presentes no discurso. Em A Ordem do Discurso, ele deixa poeticamente claro a importância que o discurso instituído ou institucional tem para sua obra:

“O desejo diz: “eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz”. E a instituição responde: “você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que lhe advém”.”

Certeau, ao contrário, fundamenta seus estudos na linguagem oral do cotidiano. Para ele a oralidade é o fundamento da relação social e exerce um papel central na constante recriação do espaço discursivo, por meio das interações com o lugar que é a fala. Ele acredita que o significado é fruto do uso cotidiano da linguagem, e não apenas da produção institucional dela. De acordo com Josgrilberg (2005,p.50) Certeau define a estratégia como

“[...] o cálculo, a manipulação de relações de poder, tornadas possíveis pelo isolamento - sustentado pelo desejo e poder – de um objeto, as estratégias organizam, determinam um lugar que pode ser administrado em relação uma exterioridade composta de alvos e ameaças3.

Embora reconheça o jogo da estratégia, Certeau acredita que o controle da história e das práticas cotidianas é, porém, uma ficção, pois a existência das táticas torna o discurso um ato performativo, um lugar praticado, ou seja, um lugar onde o sujeito dialoga e interfere no discurso institucional, tornando o controle apontado por Foucault uma ficção.

Certeau utiliza o exemplo do equilibrista na corda bamba para pensar o movimento advindo das táticas e da constante reorganização do lugar. Na corda bamba o equilíbrio acontece em pleno movimento, quando o equilibrista recria a cada passo um novo equilíbrio, que nos remete ao ditado popular que diz que o caminho se faz ao caminhar:

“Em suma, um equilíbrio anterior no espaço funciona como a base para intervenções que criarão novos equilíbrios. Parar seria uma ilusão, indicaria a confiança no próprio lugar. Trata-se, portanto, de uma série infindável de partidas.3

Certeau aponta que os relatos orais têm um papel central nessa recriação infindável do equilíbrio no espaço do discurso: são eles os movimentos que mantêm esse equilíbrio constante. Assim, para Certeau, a prática da oralidade não é um mero ato de consumo passivo e de repetição de um discurso já dado: é também um ato produtivo, performático, que traz em si uma pluralidade de códigos e referências. Com isso, Certeau aponta para a “tensão entre a “gramática que controla” e a enunciação que a atualiza3.

Certeau, assim como Foucault, preocupa-se em desvendar as microrrelações de poder no discurso. O que os diferencia nessa busca é a crença de um e de outro nas funções desses micro poderes e micro relações. Enquanto Certeau crê que elas deslocam as fronteiras da dominação imposta pelo discurso do poder, minando-o por meios das táticas, Foucault acredita que elas perpetuam essa dominação. Mas, em sua obra, Foucault termina por demonstrar exatamente o contrário daquilo que pretende provar: que o discurso do dominador não é tão rígido e impermeável assim, uma vez que o próprio pesquisador pode desvendá-lo por meio de suas rigorosas pesquisas históricas (ou arqueológicas, como ele diria). Como aponta JOSGRILBER (pag. 88), Foucault utiliza-se das táticas apontadas por Certeau ao utilizar uma visão panóptica da realidade para observar, descrever e analisar as estratégias disciplinares, traçando, em seus relatos, novas possibilidades de reconhecer e recontar a microfísica do poder que ele aponta. Assim, Foucault entra em contradição com seu próprio objeto ao usar, selecionar e dividir o material base de sua pesquisa e, a partir dele, pensar o aparato disciplinar. Foucault também situa o discurso como “um jogo (...) que jamais põe em jogo senão os signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante.”1 Porém, é em Certeau que encontramos elementos do jogo apontado por Foucault: estratégias e táticas nada mais são do que elementos do jogo e da guerra. E, tanto um quanto a outra têm relação com a luta pelo poder.

Portanto, ambos os pensadores se contradizem na fundamentação básica do seu pensamento: Foucault, que acredita na imutabilidade da ordem do discurso, acaba por comprovar com suas pesquisas que o discurso é passível de ser reorganizado, seccionado, analisado e reinterpretado, como qualquer outro objeto da ciência, a partir de um instrumental apropriado – a História, a Psicologia e a Filosofia. Certeau, que acredita que o discurso é uma construção que se faz e é feita permanentemente pelos falantes, um lugar definido pelo constante devir, acaba por inseri-lo na ordem do discurso de Foucault ao batizar seus conceitos a partir de signos utilizados nos jogos e nas guerras.

Os críticos de Foucault o acusam de pessimista. Os críticos de Certeau apontam a sua metáfora de guerra e de jogo como uma estrutura binária, A versus B, que indica um jogo de forças entre duas organizações monolíticas3. O que é incontestável na obra tanto de um quanto de outro é a contribuição que ambos deram aos estudos sociais. Foucault, ao apontar o dedo para as estruturas do discurso do poder, nos chama a atenção sobre elas, enfatizando o que nelas nos aprisiona e, com isso, nos liberta da prisão desse discurso. Certeau, ao enfatizar o papel da cultura oral e popular na formação do discurso, traz para a pauta uma gama enorme de novas possibilidades de pensar e estruturar a linguagem. E, ao mesmo tempo, nos coloca em um lugar dinâmico, onde todo o equilíbrio deve ser base para um novo equilíbrio e a imutabilidade das coisas deixa de existir: podemos nos reconstruir a cada dia, como sujeitos, como cidadãos, como sociedade.

Referências Bibliográficas:

1 – FOUCAULT, Michel – A Ordem do Discurso. Ed. Loyola. 1996

2- CERTEAU, Michel – A Invenção do Cotidiano – citado em JOSGRILBER, Fábio B. – Cotidiano e Invenção – os espaços de Michel de Certeau. Ed. Escrituras. 2005

3- JOSGRILBER, Fábio B. – Cotidiano e Invenção – os espaços de Michel de Certeau. Ed. Escrituras. 2005

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Guarda-livros Juramentado


(cena de blade runner - a morte do andróide Roy)


[...] A escrita que no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma. Se há séculos ela havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acamar-se na impressão, ela começa agora, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filme e reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. E, antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letras cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua penetração na arcaica quietude do livro se tornaram mínimas. Nuvens de gafanhotos de escritura, que já hoje obscurecem o céu do pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades, se tornarão mais densas a cada ano seguinte.

(Walter Benjamin)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O desejo de consumir te aterroriza? Assista a Surplus!



" O desejo de consumir te aterroriza. Estamos aterrorizados em sermos consumidores. Nós temos a liberdade de escolher entre a marca A, a marca B e a marca C... é essa a nossa liberdade. (...)
Constante trabalho e constante consumo, isso é loucura. Isto está destruindo tudo e só vai continuar. Eu vejo muito pouco que vale a pena preservar. Não vejo nenhum valor ou saúde em manter esse sistema.
Conseguir todas essas coisas é uma questão de coerção.
As pessoas estão sendo forçadas a trabalhar em minas e nas fábricas. Sem isso não temos todas essas coisas. Um mundo de coisas que se supõe que devemos lutar para obter durante toda a nossa vida.
Penso que ninguém se envolve nisso seriamente, mas a inércia leva isso adiante."


John Zerzan é um anarquista norte-americano que ganhou destaque a partir da década de 1980 com sua proposta fundamentada no retorno ao primitivismo. É dele o discurso acima. O documentário sueco Surplus (2003) baseia-se nas suas idéias para construir uma narrativa original e contundente sobre o nosso mundo globalizado e consumista.

Utilizando técnicas originais e uma montagem pra lá de criativa, o diretor italiano Erik Gandini coloca em cheque os valores da sociedade de consumo e aponta a insustentabilidade dos modelos econômicos do ocidente.

Indispensável!