sábado, 14 de março de 2009
Domésticas, o filme
“Sabe quando alguém pergunta a uma criança o que ela vai ser quando crescer? Ela responde médico, professora, bailarina, artista de novela... Ninguém diz que quer ser doméstica. Porque isso não é uma opção de vida: isso é uma sina que a pessoa tem”. Assim Roxane, um dos personagens do filme Domésticas, fala de sua profissão. Essa reflexão do personagem revela um olhar preconceituoso sobre o trabalho de doméstica. Ele não é visto como uma profissão que pode ser seguida como carreira, mas como uma sina, como algo que o destino reserva a algumas pessoas. E não é uma reflexão vã: o trabalho doméstico, muitas vezes a única opção de emprego para grande parte da população pobre do país, é visto como um trabalho menor, a ser realizado por pessoas sem capacitação. Isso não é coisa de agora: do Brasil colonial, em que trabalho doméstico era feito pelas escravas e seus filhos, ao Brasil pós-escravatura, em que ele continuou a ser executado pelos descendentes desses escravos acrescido de um contingente de brancos pobres, a figura do trabalhador doméstico se instalou em nossa cultura como a de um trabalhador menor, que, muitas vezes recebia como remuneração do seu trabalho moradia e comida, numa relação de falso parentesco – o agregado – que perpetuava o trabalho escravo, disfarçando-o de caridade.
Num país de tradições colonialistas, que conviveu com o trabalho escravo durante quatro séculos, o trabalho doméstico é ainda considerado um subemprego. E os profissionais que atuam nessa área são muitas vezes vistos pelos patrões como um mal necessário: é preciso ter em casa alguém que limpe o banheiro, lave a roupa, tire o pó e arrume a gaveta. Existe uma inegável desvalorização das atividades domésticas em detrimento a outros tipos de trabalho. Mesmo a dona de casa comum não tem seu trabalho valorizado e reconhecido como deve ser. Mulheres que trabalham fora sabem que ao chegar em casa terão toda a carga dos serviços domésticos para realizar, dobrando assim sua jornada de trabalho sem terem reconhecido pela família e pela sociedade esse duplo esforço. É um trabalho sem fim (todos os dias a comida tem que ser feita, a cama arrumada, a roupa lavada...) e não gera lucro visível. E a lógica do capitalismo não permite a valorização de um trabalho que não gera lucro.
Encravada no inconsciente coletivo da nossa cultura, a desvalorização do trabalho doméstico tem como conseqüência uma ausência de olhar sobre os profissionais que exercem essas atividades. Domésticas, o Filme, inverte essa ótica - ou ausência de ótica. Nele um exército invisível de domésticas, porteiros, faxineiros e entregadores é o protagonista da história. É para eles que as câmeras e a atenção do público se volta. No lugar do hall de entrada, a garagem. No lugar dos restaurantes e shopping center da classe média, ônibus, favelas e a caótica paisagem da periferia paulista.
Não podemos deixar de lembrar, no entanto, que se Domésticas, o filme é um foco lançado sobre essa classe de trabalhadoras, é também, antes de tudo, um olhar da classe média sobre elas: os personagens são caricaturas (bem feitas, mas ainda assim caricaturas) de personagens reais. Os dramas e comédias do filme são estereótipos de dramas e comédias reais. Mas, ainda assim, o filme consegue atingir alguns pontos fundamentais para uma reflexão sobre a questão do trabalho doméstico. A narrativa, em tom de comédia, não deixa de colocar o dedo na ferida da exclusão social.
Um dos pontos altos do filme é a trilha sonora. A trilha sonora original, composta por André Abujanra, utiliza como instrumentos as ferramentas de trabalho desse universo profissional: rodos, vassouras, baldes e aspiradores de pó, acompanhados de coros de vozes. Os clássicos da música brega nacional (Marcio Greik, Sidney Magal e Waldik Soriano, entre outros) que parecem sair direto de um radinho de pilha, nos levam direto para a cozinha e a área de serviço. Para expressar a violência da periferia de São Paulo, a batida seca do contemporâneo rap urbano, que marca tom pesado da vida na periferia pobre das grandes cidades. Esses três elementos musicais compõem poeticamente a ambientação do universo dos personagens, dosando o romantismo ingênuo com a violência das grandes cidades, ambos fatores presentes na vida dessa categoria de trabalhadoras.
Somando-se à música, a fotografia expressionista e a direção de arte primorosa colocam em primeiro plano, ao invés da sala de estar, a área de serviço, evidenciando a identidade cultural de uma categoria profissional marginalizada. Por fotografia expressionista podemos entender o tom carregado nas cores em algumas cenas e a iluminação marcada de sombras em outras, que evidencia o clima das cenas. O ritmo da montagem chama a atenção ao criar espaços de diálogo entre o espectador e o filme. Um dos exemplos disso é o conflito do personagem Gilvan entre casar, ter filhos e seguir carreira de trabalhador honesto ou entrar para uma vida de crimes. Na montagem, esse conflito é expresso pela edição paralela de dois planos simétricos: sua conversa com a namorada Raí e, ao mesmo tempo, com seu amigo. Num dos planos, os personagens estão à direita da tela e no outro à esquerda, deixando claro a divisão de Gilvan entre dois lados contrários, duas opiniões divergentes. Às vezes metalingüístico, o filme não deixa que o espectador esqueça que aquilo é ficção. Ao utilizar simultaneamente a fotografia a cores e em preto e branco (quando os personagens falam diretamente para o público) a narrativa permite que o público alterne sua atenção entre a diversão da comédia bem feita e a reflexão sobre a denúncia social, deixando na consciência do espectador alguns questionamentos importantes sobre a realidade do trabalho doméstico.
Um tripé.
A questão do trabalho doméstico é uma pedra no sapato da nossa sociedade. A discriminação da categoria é histórica e se expressa na ausência de proteção da lei e na lentidão com que os nossos legisladores tratam do assunto. Muitas vezes a única alternativa de trabalho para a maior parte das mulheres pobres, semi alfabetizadas e sem preparo profissional para carreiras mais desejadas, o contingente de mulheres empregadas como domésticas no Brasil vem aumentando a cada ano: segundo dados do IBGE de 2003, mais de seis milhões de pessoas trabalham em serviços domésticos. Essa estatística não computa os que nem sequer têm seus direitos trabalhistas garantidos por meio da carteira de trabalho. Desses seis milhões de trabalhadores domésticos, 93% são mulheres. E dentro do percentual de mulheres trabalhadoras domésticas, 57% é formado por mulheres negras. Portando, a desvalorização do trabalho doméstico presente no nosso cotidiano e em nossas leis deixa claro um tripé discriminatório: discriminação da pobreza, do gênero e da raça. Ao rebobinarmos o filme de nossa história podemos ver que o conceito de inferioridade racial forjado pela colonização e a tradição patriarcal da nossa cultura latina até hoje mantém de pé a desvalorização do trabalho da mulher, principalmente o da mulher negra.
Mais grave ainda é o fato de que 1,2 milhão de crianças, a maioria meninas negras e pardas entre dez e doze anos, trabalham como domésticas sem nenhum vínculo empregatício (dados do ministério público). A maioria trabalha 8 horas por dia, sem direito a folgas semanais e descanso remunerado; quatro por cento dessas meninas já sofreram maus tratos ou abusos sexuais no ambiente de trabalho. Segundo do Ministério Público é difícil fiscalizar esse tipo de trabalho abusivo, já que se desenvolve dentro das casas e é, muitas vezes, disfarçado pela guarda da menor trabalhadora concedida ao “empregador”.
Personagens ou mulheres reais?
Mais que um filme sobre esse universo de trabalhadoras, Domésticas é um importante instrumento de reflexão sobre a mulher e o lugar que a ela é reservado em nossa sociedade. Por meio dos personagens Quitéria, Roxane, Raí, Cida e Cléo, o filme discute a condição feminina com leveza e propriedade, mostrando a luta que todas as mulheres, domésticas ou não, enfrentam no dia a dia para terem seus sonhos e seus direitos reconhecidos.
As domésticas do filme foram tão bem caracterizadas que as cinco atrizes principais dividiram o prêmio de melhor atriz no Festival de Recife em 2001. As cinco personagens que elas representam formam um mosaico colorido e multifacetado de mulheres trabalhadoras domésticas com seus sonhos, suas ambições, suas dores, seus amores e seus desejos.
Cléo não sabe se acredita em reencarnação. Afinal, por que ela estaria amargando uma vida de trabalho exaustivo e quartos apertados se sua bisavó foi escrava, sua mãe doméstica, e ela dá continuidade à história familiar acreditando que o melhor para a sua filha é um emprego de babá? Cléo duvida que pode romper o ciclo milenar da exclusão a que está fadada. Sua filha, porém, acredita que pode mudar sua história. Aí começa o sofrimento de Cléo, em busca da filha que foge de casa para fugir da “sina” de doméstica.
Roxane acredita que o seu trabalho é uma alternativa temporária de sobrevivência. Ela não é doméstica, está doméstica. E vai à luta para conseguir sua tão sonhada ascensão social. Seus sonhos esbarram, porém, na exclusão reservada à mulher sem formação escolar. Em busca da ascensão social, Roxane resvala para a prostituição.
Quitéria não tem sonhos. Na sua ingenuidade, acredita que a doméstica numa casa é como uma geladeira ou uma máquina de lavar quebrada: se não funciona como deve, troca-se. E assim vai levando a vida, de patroa em patroa, de casa em casa, esperando que um dia isso tudo termine. Sem família, dependente do emprego de doméstica para sobreviver, Quitéria é um resquício da senzala perdida no tempo.
Rái não gosta de ser chamada pelo seu nome de batismo - Raimunda - que denuncia suas raízes nordestinas, e espera encontrar no casamento a sua felicidade. Ocupa seu tempo livre na busca do seu príncipe encantado, que nem precisa ser tão encantado assim. É ela quem põe um ponto de interrogação no conflito da mulher moderna entre a solidão e o casamento, entre a realização pessoal e profissional e a realização pela formação de uma família.
Já Cida sabe que o casamento não é sinônimo de felicidade e vai à luta por um relacionamento que a satisfaça. O marido indiferente é substituído pelo amante fogoso e ela encontra nesse relacionamento o equilíbrio para enfrentar seu pesado dia a dia de diarista.
Cada uma delas com seus sonhos – ou ausência de sonhos – vai mostrando ao espectador, de forma leve e bem humorada, a realidade dura e seca da pobreza nas grandes cidades. Em sua maioria, essas mulheres / personagens são oriundas do interior do país e vêm para São Paulo em busca de trabalho. Representam a obstinação de um povo em sobreviver às condições de pobreza a que foram submetidos pelo nascimento. O filme ilustra o que acontece com outras tantas mulheres que saem de suas cidades de origem e deixam suas famílias ainda muito jovens para buscar o sonho de sobreviver dignamente numa grande cidade. Mas embora a dignidade possa caber num apertado quarto de empregada, a realidade da cidade grande é muito maior que o sonho de qualquer moça do interior.
Domésticas, o filme - Fernando Meirelles, 2001
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Um comentário:
Excelente o comentario de Maria Claudia
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